Ontem acordei com um farfalhar de asas dentro do meu quarto. Ainda de olhos fechados pensei: deve ser um morcego – é comum receber a visita de vários animais que entram pela varanda do meu quarto, sobretudo morcegos. Abri os olhos e vi um bichinho encolhido no vidro da porta. Estava tão agarrado que à distância não dava nem pra identificar que animalzinho era.
Levantei e fui olhar de perto. Ai, meu Deus, era um beija-flor. Tão pequenino que não acreditei que pudesse voar e o bico parecia maior do que o corpo. Estava assustado, tremendo. Eu o peguei, coração batendo forte e o aconcheguei... Que delicia! Ele não esboçou nenhum movimento e aos poucos se acalmou. Então abri as mãos pra ver se tinha algum machucado e se as asas estavam inteiras. Ele estava perfeito.
Era de um tom azul noite, meio furta-cor, lindo. Os olhos pretinhos e brilhantes me olharam confiantes. Então, fui pra varanda pra soltá-lo e abri as mãos bem devagar, embora meu desejo egoísta fosse de mantê-lo pra sempre comigo. Ele ficou por um instante livre, porém quieto, talvez não acreditando que eu lhe dava o direito de ir... E voou para o abacateiro que tenho no fundo do quintal.
Antes que ele pousasse num dos galhos, minha vida me passou pela cabeça e eu chorei de saudades do amor possessivo da minha mãe.
Eu tinha menos de 10 anos e pensava olhando pra ela: "Deus, se um dia ela for embora eu não poderei mais respirar." Eu olhava pra minha mãe como se ela fosse Deus... Como viver sem a sua presença? Eu não admitia a vida sem ela.
Na adolescência as rusgas tão normais entre mãe e filha vieram.. Era natural o embate. Mas, não entendíamos, ela me queria perfeita e apenas pra ela. Quanto a mim, me sentia sufocada... E eu queria voar com minhas próprias asas.
Ainda adolescente me casei, tive filhos e compreendi finalmente este amor de mãe que, de tão imenso, peca. Aí o Tempo foi cruel e nos roubou o espaço que precisávamos para nos aconchegar de novo... E ela se foi me deixando perplexa diante do mundo.
Às vezes tenho pesadelos e neles eu chamo por ela. Imploro: "Mãe, não quero mais voar sozinha. Vem voar comigo!" Acordo sempre com a dura realidade que será inútil minha súplica. Dela apenas terei as lembranças, as lições, que agradeço ter recebido.
As recordações do amor desmedido e sufocante da minha mãe por mim são belas. Tão belas e essenciais que até hoje almejo um amor tão sufocante quanto o dela.
Saudades muitas daquele colo, daqueles ombros, daquele cheiro, daquela voz, da textura daquela pele, daquele olhar, daquele amor opressivo. O pequenino beija-flor, ontem no meu quarto, me trouxe lembranças da minha mãe.
As coisas e os animais são o que são e permanecem o que são. Mas o homem será o que ele decidiu ser. O seu modo de ser, a existência, é um sair para fora em direção à decisão e à automoldagem. Assim, a existência é um poder-ser e, portanto, é incerteza, problematicidade, risco, decisão, impulso adiante. Este impulso pode ser em direção à Deus, ao mundo, ao próprio homem, à liberdade, ao nada..